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Desabafo de um dia chuvoso

São 20 de junho de 2018 e Teresina amanheceu atípica. Para quem não conhece a cidade, nesta época do ano, os dias são secos, ensolarados e quentes. Mas não hoje. Levantei-me como de costume para ir ao meu estágio, naquele modo automático que só quem tem muito sono pela manhã conhece. Ao abrir a porta de casa, deparo-me com um céu nublado e uma garoa bem fina. Mesmo que fosse janeiro, período chuvoso daqui, não teríamos apenas esses chuviscos. Teresina é uma cidade dos 8 ou 80: se o céu não está limpo de nuvens, está carregado e a chuva que cai é forte, para alagar ruas em poucos minutos.

A questão é que esse tempo incomum me fez retornar aos meus 14 anos, quando ainda morava na fria cidade de Garanhuns, no interior do estado de Pernambuco. Só para esclarecer: fria para os padrões nordestinos no Brasil. Como eu não morava longe do colégio, ia a pé, debaixo da garoa durante parte do ano. O tempo de Teresina hoje me remeteu àquela época.

Daí em diante, uma chuva de memórias caiu sobre mim. A adolescência não é fácil para a maioria das pessoas: o corpo está mudando, sentimo-nos esquisitos, os hormônios gritam no lugar dos nossos sentimentos, e - acredito eu - a maioria das meninas começa a criar uma autoimagem distorcida, em parte culpa da sociedade, que cobra corpos e comportamentos padrões nos quais temos que nos encaixar.

Mas eu não era uma adolescente comum. Sempre tive problemas com a balança, desde criança, fase em que acredito ter desenvolvido síndrome metabólica por conta de uma alimentação nada balanceada. Aos 11 anos, eu percebi que meus pêlos não cresciam iguais aos das minhas colegas na escola. Aos 13, eu já passava cremes depilatórios no rosto porque já tinha que lidar com apelidos como "macaca" e ouvir piadinhas do tipo "gente, vamos fazer uma vaquinha para comprar uma Gillette pra ela". Isso me corroía por dentro.

Aos 14, passei a estudar em um colégio evangélico. Eu odiava aquele lugar. Não pela crença ser diferente da minha, longe disso. Mas porque, se a cidade era fria, as pessoas eram geladas em sentimentos. Foi quando eu percebi que não importa sua condição financeira ou social, seu credo ou religião. Isso não faz o caráter de ninguém - embora eu acreditasse que esses últimos pudessem influenciar em algo. Em um colégio evangélico, cheio de estudantes evangélicos e católicos - ou seja, supostamente cristãos, eu sofria com o preconceito e a chacota. Eu era desrespeitada gratuitamente, não apenas por ser gorda, mas por causa do meu hirsutismo. Por causa de características minhas que eu não escolhi ter, que estão fora do meu controle (embora hoje eu saiba que posso amenizar os sintomas através de bons hábitos de alimentação e atividades físicas).

Todas essas memórias vieram à tona enquanto a condução que peguei para o meu estágio seguia seu rumo. Eu, imersa em lembranças angustiantes. Algumas coisas, a gente acha que superou, mas na verdade só guardamos bem lacradas em um baú para evitar mágoas.

Eu gostaria de dizer, no auge dos meus 29 anos, que eu superei tudo isso. Que, apesar de todos os dias lavar meu rosto e me deparar com o espelho, com todos esses riscos escuros e grossos que crescem como erva daninha no meu rosto, sem parar, eu consigo me aceitar. Ainda não cheguei a essa evolução. Só escolhi realizar o processo de me barbear diariamente automático, como levantar, fazer carinho na Jolie, preparar o café, escovar os dentes, tomar banho, vestir-me, calçar-me, pegar a bolsa e partir para o estágio. Alguns dias são mais fáceis que outros, isso é verdade.

Mas, naqueles difíceis, em que o simples ato de passar um barbeador no meu rosto feminino dói mais do que todos os cortes que o aparelho poderia me causar em momentos de desatenção, eu me obrigo a me lembrar de algo aparentemente simples, se fôssemos bem racionais: eu não sou o meu peso. Eu não sou meu hirsutismo. Eu, Mayara, sou filha, irmã, namorada, tia, estudante de Jornalismo e Relações Públicas, amiga, pesquisadora, historiadora desempregada, concurseira, feminista, divertida quando estou de bom humor, uma onça quando ele não está tão bom assim, ruiva, sardenta e sim, gorda e hirsuta. Mas minhas características físicas não podem nem devem me resumir. Jamais.



Não é fácil lembrar-nos disso quando estamos em sofrimento. E o hirsutismo - seja ele causado pela SOP, como no meu caso, ou por qualquer outro motivo - não deve nos reduzir a ele. Somos mais do que isso, meninas. E completamente equivocado será quem quer que ouse a nos dizer o contrário.

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